Radar Fundasp

Edição Especial

Boletim Informativo Quinzenal
FUNDASP - Fundação São Paulo Mantenedora da PUC-SP e do UNIFAI.

nº06
15/02/2022
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Beco dos Aflitos na primeira metade do século XX, ainda com calçamento de pedra, com a Capela dos Aflitos ao fundo.

 

CAPELA NOSSA SENHORA DOS AFLITOS SERÁ FINALMENTE RESTAURADA!

Uma joia do século XVIII, repleta de histórias apagadas, será recuperada e restaurada, para reparar séculos de esquecimento e descaso, manter viva a memória de tempos cruéis e injustos e honrar a vida dos esquecidos.

 

Capela dos Aflitos, uma epifania, uma cicatriz

É muito difícil encontrar palavras, frases ou narrativas capazes de traduzir o impacto objetivo e subjetivo, ou a experiência, como se prefere hoje, de entrar em contato com a história da Capela Nossa Sra. dos Aflitos, ou simplesmente Capela dos Aflitos. E, sobretudo, ficar na presença destas pessoas intraduzíveis que fazem parte desta longa jornada de luta para manter de pé a Capela e lutar pela sua restauração; ouvir seus relatos de viva voz, naquela concha sagrada, durante horas que parecem minutos, e onde tudo parece ocorrer numa outra dimensão; ver o brilho intenso dos olhos destas pessoas, que faria qualquer um se perguntar: o que as move?

Melhor seria se Gabriel García Marquez estivesse aqui para sobre elas e sobre a Capela escrever um livro, ou mesmo se esta tarefa ficasse nas mãos talentosas de nossa Eliane Brum. @brumelianebrum.

Imagine uma edificação do século XVIII, mais precisamente de 1779, encravada num beco do mesmo nome, Beco dos Aflitos, construída em um cemitério que existiu entre 1775 e 1858, e sobre o qual ergueram-se edificações que asfixiam por todos os lados a Capela que um dia fez parte deste Cemitério? Imagine que tudo que se ergueu sobre este Cemitério ergueu-se sobre os despojos de cerca de 30 mil almas? Almas literalmente penadas, porque sem identificações, sem nenhum tipo de exéquias funerais, e muitas vezes sem sequer uma mortalha?

De testemunha, para contar esta história, milagrosamente - e pela luta incansável de inúmeros ativistas ao longo de dois séculos – restou a Capela dos Aflitos.

Está tudo lá, bem no centro de São Paulo, no bairro da Liberdade, recoberto por camadas e camadas de História, apagamentos, ranger de dentes, resistência e ressurgimentos.

Imagine uma mistura improvável de lanterninhas japonesas com todo tipo de comércio e lojas com suas cores feéricas, com sua profusão de sons, cheiros e degradações, servindo de corredor para um lugar cuja presença material e imaterial vai transportá-lo para dois séculos atrás, um imenso cemitério de pobres, pretos, anônimos e proscritos, um patíbulo servindo a uma forca para execuções regulares de condenados, a luz mortiça de um largo chamado Largo da Forca,(hoje Praça da Liberdade) e um Pelourinho, tudo próximo, fazendo parte do mesmo conjunto.

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Placa instalada pela municipalidade, na fachada da Capela dos Aflitos.



O local do Pelourinho ganhou uma placa ao lado do Metrô Liberdade, ínfima ponta de um iceberg para sempre soterrado sob a vida que pulsa e corre indiferente aos bons fantasmas que teimam em não desaparecer para sempre.

E que estão consubstanciados, em grande parte, na Capela dos Aflitos, lugar perturbadoramente indecifrável, cujo velário corresponde ao exato lugar onde o preto Chaguinhas -, mártir santificado pelo povo, objeto de devoção a quem os devotos dirigem pedidos, dentre os quais muitos são atendidos segundo testemunham os próprios suplicantes -, passou a noite anterior ao seu enforcamento, pena sem crime, em 20 de setembro de 1821.

Ir caminhando pelos cerca de 50 metros de extensão do beco, vendo lá no fundo a fachada quase cenográfica daquela construção -, um campanário e sino que parecem ter sido miniaturizados, a revelar ali a presença de uma igrejinha -, é o tempo de que você precisa para começar a ser transportado para dentro de uma história inenarrável, em que pese a profusão de relatos encontrados na web, muitos eivados de equívocos, como os que se referem à história da Capela e seu mártir, Chaguinhas, como "lenda urbana", linguagem destinada a um certo tipo de turismo urbano comercial.

 

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Cartaz presente na Capela dos Aflitos, com uma das cinco ou seis imagens de Chaguinhas que circulam. Uma das campanhas pelo Sítio Arqueológico do Cemitério dos Aflitos. Leila, Emília, Igor, padre Enes, Eliz e José Antônio, presentes no encontro de 29/01/22.

 

Não importa quais sejam suas crenças: você será capturado por alguma coisa cujo termo mais aproximado seria o de um sentimento de transcendência. Que depois vai se misturar a um conjunto indefinível e variado de impressões e sensações que podem passar pela epifania e chegar à devoção, não necessariamente à devoção religiosa, mas uma devoção de entrega, de se render a uma história tão intensa, tão dolorosa quanto gloriosa e que você saberá que nunca mais poderá se desfazer dela.

Alguma corda insuspeita costuma tocar dentro das pessoas, o que se traduz numa experiência subjetiva muito poderosa.

E em algum momento você vai se perguntar como este lugar tão pequeno, tão ínfimo, tão pungentemente pobre – o resto, nos termos do filósofo e professor Oswaldo Giacóia Jr. -  e que está ali há quase dois séculos e meio, pode ser um santuário tão grandioso, ter uma presença tão poderosa e inspirar tanta reverência e contrição – contrição porque você sente, e depois vai saber, que a história da Capela condensa todos aqueles elementos inseparáveis do percurso humano, glória e infâmia, e que, mesmo que não se queira, se é herdeiro desta história, onde a glória pode ser saboreada, mas a infâmia tem que ser reparada. E então, você já faz parte da jornada. Ou não.

Mas o sentimento do sagrado, difusamente ou claramente, vai impregná-lo.

E agora, em pleno 2022, século XXI, depois de muito tempo e muita luta de heroínas e heróis anônimos, - alguns dos quais este texto irá presentificar -  um grande sonho vai se realizar, a Capela será restaurada.

Uma graça foi concedida, você ouvirá, com a intercessão de Chaguinhas: a Capela, que já é tombada pelo município e pelo Estado de São Paulo, será finalmente restaurada, para não desabar e desaparecer. Essa pequena-grande joia será preservada, e com ela, uma larga fatia soterrada de nossa História.  

Este apagamento, pelo menos este, não acontecerá.

À Capela dos Aflitos, tão pequenina, hoje só uma cicatriz, caberá ser a fiel e luminosa depositária de uma história impossível de ser narrada só por uma voz, a voz modesta deste precário relato.

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Imagens e ângulos de aproximação da Capela dos Aflitos através do Beco dos Aflitos.

 

Capela dos Aflitos, solo sagrado

Igor Carollo, o arquiteto do grupo, presente ao encontro, toma a palavra e expõe, com enorme riqueza de detalhes, uma parte substancial da copiosa história da Capela dos Aflitos:

"A Capela dos Aflitos é o último receptáculo da memória do enorme Cemitério que existia no entorno dela. É uma porta-voz de aproximadamente 30 mil corpos enterrados neste Cemitério, que hoje está coberto por todos estes edifícios que espremem a Capela por todos os lados. Quando, em 2018, o sobrado ao lado foi demolido, na hora que se retirou a sapata, encontrou-se um crânio humano perfurado nos globos oculares, e muitos outros despojos.

É uma memória que foi completamente dizimada e apagada da cidade de São Paulo, e se perdermos este último bem, [a Capela], perdemos para sempre esta memória, não tem mais volta, uma parte importante da História simplesmente desaparece.

 

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Imagens da Capela a partir do coro e uma imagem do velário.

 

Veja, os muros de taipa do Cemitério não existem mais, as cruzes não existem mais, os entalhes originais dos altares foram todos comidos pelos cupins, as talhas barrocas dos oratórios também, houve aquele incêndio em 1994, porque a parte elétrica está comprometida, o coro está praticamente intransitável..., e você olha para fora e sabe que ali onde é o metrô Liberdade era o Largo da Forca, você vê a forca, onde as pessoas hoje comem pastel, transitam aqui na feirinha, sem imaginar que há pouco tempo atrás (considerando a escala do tempo histórico), tinha pessoas, em geral negros, mas também todo tipo de gente desvalida, subindo a escadinha do patíbulo para serem enforcadas.

Ali existia a execução penal, e os corpos eram imediatamente transportados para cá e eram enterrados neste Cemitério em valas comuns coletivas. Sem nenhum tipo de identificação, sem direito à memória, a um registro, à nada, eram simplesmente sepultados enrolados em mortalhas, ou nem isso.

O Cemitério dos Aflitos foi o primeiro cemitério público da cidade de São Paulo, mas o hábito da época era enterrar as pessoas dentro das igrejas, ou em espaços adjacentes às igrejas. Esta informação está contida no processo da morte de Julius Frank, que era um professor da Faculdade de Direito da USP na época, que ao falecer não era batizado e nem tinha religião, e então não poderia ser sepultado dentro das igrejas católicas, como era norma na época [o sepultamento de pessoas brancas e as mais bem posicionadas na sociedade, serem sepultadas dentro de igrejas].

Sendo assim, ele seria sepultado no Cemitério dos Aflitos. Mas os estudantes, seus alunos, se reuniram para não permitir que seus despojos fossem para "aquele lugar horroroso", o Cemitério dos Aflitos, o que seria um enorme desrespeito, e com sua mobilização e arrecadação de dinheiro, conseguiram sepultá-lo nas arcadas da Faculdade de Direito da USP, ao lado da sala onde ele dava aulas, e o túmulo dele está lá até hoje.

 

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Túmulo de Julius Frank nas arcadas da Faculdade de Direito da USP, citado pelo arquiteto Igor Carollo.

 

Então os pobres, os que morriam nas ruas sem uma identificação, os que não tinham origem ou nem um nome, os negros, os indigentes, os indígenas, os que morriam sozinhos na Santa Casa de Misericórdia da época, próxima daqui, todos eram "descartados" neste Cemitério.

O Cemitério era este quarteirão inteiro, que depois foi sendo loteado, onde foram sendo construídas casas, e depois todos estes edifícios que você vê.
Todos estes prédios e construções no entorno, foram levantados sobre o Cemitério, sobre os despojos de pessoas negras, escravizadas (porque na época ainda existia escravidão no Brasil), e era este tipo de tratamento que estas pessoas, cujas vidas já tinham sido tão degradadas, recebiam no final do seu existir.

Então o restauro é a garantia de que esta história vai ser preservada, vai ser contada, é a única garantia palpável disto, de que todas estas vidas, todo este horror seja, de algum modo reparado, que se possa, ainda que tão tardiamente, dignificar de forma mínima, as vidas destas pessoas.

Nós queremos que estas lanternas japonesas sejam retiradas aqui do beco, porque aqui é um lugar sagrado, e que nós possamos voltar a sacralizar este espaço, porque o que ocorre é que, até pelo estado degradado de conservação da Capela, as pessoas têm dificuldade de entendê-la como um espaço sagrado. É muito comum as pessoas usarem a frente da capela para urinar, fazer suas necessidades, usar o beco como espaço de carga e descarga, lugar para descartar lixo, não percebendo que aqui existe uma igreja, uma joia de São Paulo. Mas mesmo o não reconhecimento dela pelo IPHAN, por exemplo [a Capela é tombada na esfera municipal e estadual, mas não na esfera nacional, cujo órgão responsável é o IPHAN] é contraditório também, porque ela conta um período muito importante da construção da sociedade brasileira, não só da cidade de São Paulo, mas do Brasil.

O IPHAN ainda tomba pela constituição de 1937, a "polaca" de Getúlio Vargas, cuja compreensão era tombar monumentos, obras monumentais. Por exemplo, a Catedral de Brasília foi tombada ainda na forma, enquanto era construída, justamente devido a esta visão monumentalista, e também porque a construção de Brasília foi um grande marco, teve a questão da interiorização da capital etc.

A arquitetura mais singela, os ritos, as tradições, entraram na nossa Constituição de 1988, mas antes a nação via algo ainda não construído como patrimônio a ser tombado, e não viam assim uma edificação de 1779, como a Capela.

Se formos a Minas Gerais, por exemplo, dos 890 municípios, somente cerca de 80 tem edificações tombadas, sendo que em mais da metade deles existe patrimônio histórico a ser tombado pela nação. Há o papel dos municípios e estados, lógico, que também não dão conta às vezes, e há um problema grave de desaparelhamento destes órgãos no geral, eles têm sido sucateados, às vezes não conseguem operar, não tem técnicos, é complicado. Temos um problema patrimonial no Brasil que é estrutural, mas o não reconhecimento pelo IPHAN não faz da Capela dos Aflitos um patrimônio menor. Ela é um imensurável patrimônio histórico.

Então a restauração da Capela dos Aflitos é também altamente simbólica, porque o Brasil está cheio de "capelas-dos-aflitos", e o Cemitério dos Pretos Novos, no Valongo, no Rio de Janeiro, é um exemplo disto: as centenas de navios negreiros que chegaram no cais do Valongo, com  muitos negros mortos, ou semi-mortos, os que não eram "descartados" no mar, e os que morriam logo ao chegar, e outros, eram jogados nas valas comuns do Cemitério do Pretos Novos, o que ficou apagada por muito tempo, mas ganhou notoriedade quando despojos do Cemitério começaram a aparecer nas águas e correntes do Rio de Janeiro, por ocasião das enchentes.

O Cais do Valongo e o Cemitério do Pretos Novos virou patrimônio da Humanidade, pela UNESCO, por esta história que se equipara a um holocausto.   Assim como aqui, que tem potencial para ser patrimônio da Humanidade, de ser tombada pela UNESCO, porque ela conta um processo que aconteceu no Brasil, mas se repetiu em outros países, em outros locais, ela tem esta universalidade requerida pelos patrimônios da Humanidade.

Além da restauração da Capela, nosso projeto é a criação do Memorial da Capela dos Aflitos, num espaço ampliado para além da Capela, que é este sítio arqueológico depositário dos despojos de todas estas pessoas e de toda esta História."

 

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Foto histórica que registra a reunião de consolidação da restauração da Capela dos Aflitos, em janeiro de 2022 com o Secretário Executivo da FUNDASP e procurador da Cúria Metropolitana, padre Rodolpho Perazzolo, no centro da foto, contando com a presença do arquiteto Márcio, da Cúria, Emília Ribeiro, arquiteto Igor Carollo, Dra. Ana Paula Grillo, padre Enes, pároco da Capela dos Aflitos e Eliz Alves.  
   
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Encontro na Cúria Metropolitana para definições relativas ao restauro: padre Rodolpho Perazzolo ao centro com sua equipe, contando com a presença de ativistas da UNAMCO e de padre Enes. 

 

Quando do loteamento do Cemitério, havia um acordo em manter algum espaço no entorno da Capela para seu embelezamento, e para que tivesse um mínimo de respiro e afastamento das construções que iam surgindo, mas por alguma razão isto não se cumpriu. O ensaio de Wanderlei dos Santos, "Capela dos Aflitos", explica isto com clareza.

"A Capela só não foi demolida por muita pressão e ativismo dos coletivos negros, que desde sempre assumiram a manutenção deste local. Foi muita, muita resistência, e eu fiz da Capela dos Aflitos a razão central da minha vida".

Igor Carollo, o jovem arquiteto, um dos heróis anônimos da resistência que compareceu a este encontro, e que conheceu a Capela dos Aflitos sem querer, voltando da aula quando ainda era estudante em um dia qualquer, ao passar em frente ao Beco dos Aflitos e olhar para dentro dele, conta que enxergou a Capela pela primeira vez e que, a partir deste momento, fez um vínculo inexplicável e permanente com ela. E se emociona, contendo as lágrimas, afirmando que a causa da Capela dos Aflitos e do Memorial tomou conta de sua vida. Para sempre.

 

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Eliz Alves, incansável, diretora da União dos Amigos da Capela dos Aflitos, UNAMCA. Imagem capturada num momento de aproximação à Capela dos Aflitos, estando ela desapercebida. Esta é uma minúscula lateral que restou para a Capela.


Eliz Alves, alma mater da Capela,e aUNAMCAUnião dos Amigos da Capela dos Aflitos

 

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Conjunto de fotos que registra símbolos da UNAMCA, cartazes de atividades da Capela e a participação de ativistas da Capela dos Aflitos no Tribunal do Genocídio realizado pela PUC-SP no segundo semestre de 2021.

 

Eliz Alves é diretora do coletivo UNAMCA, entidade que hoje centraliza as lutas pela preservação da Capela. Onipresente, Eliz exala serenidade, precisão e extrema dedicação. É uma presença sábia e discreta, a referência absoluta do dia-a-dia da Capela, a quem todos se dirigem e de quem todos obtêm o que perguntam ou precisam. Solícita, gentil, cuidadosa. É parte indissociável da luta de resistência da Capela e também da labuta diária, que vai desde a organização e recepção na Capela, presença infalível nas missas das segundas-feiras às 12h., passando pela elaboração e articulação intelectual do movimento e dos coletivos envolvidos, indo até o mais comezinho dos afazeres, como lidar com o lixo e manter a frente da Capela livre de todo tipo de sujeira e dos descartes descuidados das lojas ao redor.

Ela é a garantia de que não é o destino clássico de um beco o futuro que está reservado à Capela dos Aflitos.

Eliz conta que por muito tempo, observou trabalhadores terceirizados de comércios próximos irem almoçar suas quentinhas sentados na calçada suja em frente à Capela e deixar jogados por ali mesmo os pratos de alumínio com restos de comida. Conta que sempre recolheu pacientemente este lixo, mesmo depois de pedir a eles que colocassem estes restos em lugares adequados, mas que o que mais a perturbava era vê-los comendo sentados no chão, em condições tão indignas, e que aquilo a penalizava, a ponto de ir conversar com os donos dos comércios que usavam os serviços destes trabalhadores terceirizados, para que providenciassem um lugar decente para estes trabalhadores almoçarem.

Mas a relação com os comerciantes do entorno deve ser sempre muito cuidadosa, e é isto que Eliz faz, tornando-se assim, também a embaixadora/diplomata do lugar.

Um outro nome para Eliz Alves é, sem dúvida, ´incansável´. Diante dela, você pode voltar a se perguntar: o que move esta pessoa? Que tipo de fé, de devoção, de força, de persistência é esta?

A Capela dos Aflitos tem muitos apoiadores, muitos ativistas, muitos coletivos, já foi objeto de muitas reportagens, textos, análises, teses, documentários etc, mas a alma mater literalda Capela é, sem dúvida, Eliz Alves.

Ela conta que a UNAMCA foi criada a 27 de junho de 2018 para organizar, centralizar e se responsabilizar por toda a movimentação e busca de cuidados, providências, doações etc, para aquilo que finalmente vai acontecer, a restauração, mas que o arco de contribuição, participantes e ativistas é muito maior do que a UNAMCA, e que todos são bem-vindos, toda contribuição é necessária e indispensável.

Informa que a presidente da entidade é Maria da Graça, Rainha do Congo de Minas Gerais.

 

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Padre José Enes de Jesus, pároco da Capela dos Aflitos e da Igreja de São Gonçalo.

 

Ao lado dela, o padre José Enes de Jesus, pároco da Capela dos Aflitos e da Igreja São Gonçalo, lança a todos ali naquele encontro nos bancos da Capela um olhar e um sorriso compassivos, completando com harmonia uma rede de força e perseverança presentes em todas aquelas feições expressivas e no brilho intenso dos olhos destas pessoas tão eloquentes, tanto nas falas quanto nos silêncios.

Emília Ribeiro, secretária de Cultura da UNAMCA, foi outra presença forte neste encontro. Firme, diligente, experiente, acolhedora, conta que será a Ministra da Eucaristia da Capela, e que, para isto, iniciará a devida formação da Catedral da Sé. Diz isto confiante e claramente comprometida com sua importante futura função na Capela.

Também presente José Antonio Alves, ativista e membro da UNAMCA, atento, bem-humorado e dedicado.

Todas estas pessoas, e muitas mais, doam anonimamente parte de suas vidas ao projeto de restauração da Capela dos Aflitos e Memorial do Cemitério dos Aflitos. Todos os dias, há muito tempo. Com aqueles inequívocos olhares febris da dedicação. E perguntamo-nos, de novo, o que move estas pessoas.

 

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Emília, Eliz, padre Enes, Igor, Leila e José Antônio, fotografados em frente ao altar, a partir da entrada da Capela. Foto do encontro do dia 20/01/22.

 

Chaguinhas, santo popular, supliciado em praça pública

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Uma das representações mais recentes de Chaguinhas, desenho da artista plástica Alexia Lara, de setembro de 2021.

 

Francisco José das Chagas foi enforcado em 20 de setembro de 1821, no então Largo da Forca. Mas aquele não foi um enforcamento qualquer, como se verá.

Chaguinhas, como é chamado há dois séculos, era negro e cabo do Exército do Brasil colônia, submetido, portanto, à metrópole imperial portuguesa. Ele pertencia ao 1º Batalhão de Caçadores, e servia em Santos, onde morava.

Fez parte daquele contingente de soldados que, em qualquer parte do Brasil de então, por não serem portugueses, recebiam um tratamento infinitamente inferior ao tratamento dispensado aos soldados portugueses. A discriminação era gritante e, no futuro próximo, foi combustível para inúmeras revoltas nativistas que criaram o caldo da independência.

É praticamente certo que, após sua execução, seu corpo foi jogado em alguma vala do Cemitério dos Aflitos, e se isto for fato, como a maioria dos historiadores atesta, o que resta de seus despojos é um dos cerca de 30 mil que estão soterrados sob as edificações que hoje cercam a Capela dos Aflitos.

Mas seu vínculo com a Capela não se resume a isto. O que é certo e atestado por documentos da época, arrolados pelos historiadores que pesquisaram este assunto (ver as referências ao final do texto), é que na noite anterior à sua execução ele pernoitou, em vigília, na Capela, exatamente onde hoje é o velário, e ao lado da consagrada Porta do Chaguinhas, onde as pessoas vão hoje em romaria rezar, deixar bilhetinhos com seus pedidos de graças e milagres, e – o mais importante – bater com os nós dos dedos três vezes na Porta, toc toc toc.

 

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O conjunto de imagens mostra a Porta de Chaguinhas, com uma profusão de bilhetes onde os devotos fazem seus pedidos ou agradecem uma graça alcançada com placas gravadas e quadros, agradecendo das mais variadas formas, inclusive singelamente deixando uma bala (um doce) para ele, como se pode ver em uma das fotos. É nesta porta que os devotos batem com os nós dos dedos por três vezes.

 

É um ritual que se repete todos os dias, todas as horas, o tempo todo, estando a Capela aberta. Mas há quem faça isto também pelo lado de fora, quando a Capela está fechada.

Mas qual é a razão para as três batidas, com os nós dos dedos, depois de rezar e fazer o pedido? Este rito tem a ver com um fato espantoso que teria acontecido no momento da execução de Chaguinhas. A transmissão deste fato até os dias de hoje vem em grande parte pelo suporte da tradição oral, mas estudiosos e historiadores encontraram evidências e vestígios, pesquisando em documentos e jornais da época, que permitem afirmar sua veracidade.

O fato espantoso e tenebroso, a ponto de levar a multidão ali presente à repugnância coletiva e ao horror, foi que a corda que enlaçava o pescoço de Chaguinhas rompeu-se três vezes, num processo longo de suplício onde ele era pendurado, tombava no chão semi-morto, para ser novamente pendurado e cair novamente, até ter sua cabeça decepada por um exasperado carrasco (em algumas versões) ou ter finalmente sido executado no quarto enforcamento (em outras versões). A pesquisadora Patrícia Cristina Rodrigues de Oliveira (ver referência ao final) encontrou documentos datados de um período imediatamente posterior ao enforcamento de Chaguinhas, de parte de uma espécie de almoxarifado provincial solicitando cordas de outro tipo para enforcamentos, e determinando um período útil para o reuso das cordas, dando a entender que se devia evitar "fadiga de material", para que não mais acontecessem casos como os de Chaguinhas, que indispunham a população contra as autoridades.

À medida que as tentativas de enforcamento iam se sucedendo sem sucesso, a multidão foi entrando em fúria e começou a bradar e urrar pela suspensão daquela execução, e pela soltura de Chaguinhas. Foi, então, um ônus enorme para as autoridades arcar com a tensão e risco de uma revolta popular que chegasse às vias de fato, por algo que nunca havia acontecido e que causou uma comoção profunda nas pessoas, fazendo com que cada um ali presente se tornasse um repetidor exponencial do que havia presenciado.

Tão impressionante foi o fato, e tamanha foi a empatia e compaixão causada pelo suplício de Chaguinhas, que imediatamente ele foi se transformando no mártir que ainda hoje desperta comoção.

Mas afinal, qual foi o crime de Chaguinhas? Nenhum. E este é o ingrediente explosivo. Chaguinhas foi o escolhido como instrumento de um governo colonial despótico para ser submetido a uma punição exemplar, que amedrontasse e contivesse a insatisfação popular, inclusive de grande parte dos soldados que, com uma frequência perigosa se amotinavam e revoltavam contra as degradantes condições a que eram submetidos, e sobretudo, à ausência regular de soldo e mesmo de alimentação, abrigo e vestimentas, na caserna.

A província de São Paulo cultivava relações especiais com a Coroa e a ela aderia de forma incondicional, numa troca mútua de favorecimentos, e, por estes préstimos, conseguia condições muito melhores e soldos regulares aos seus soldados e destacamentos, e em especial aos soldados portugueses, fazendo com que, graças a isto, eles fossem submissos e garantissem a ordem na Província.

A ponto de terem sido eles, os soldados de São Paulo, que brutalmente dissolveram o motim de seus colegas de Santos, que viviam num estado de miserabilidade completa, sem receber soldos ou alimentos havia anos, vivendo de migalhas. Então o "crime" de Chaguinhas foi estar entre os amotinados de Santos e ter aparecido como uma liderança. Todos foram presos, mas as autoridades paulistas os dividiram em categorias, obviamente que com critérios totalmente aleatórios e viciados, onde alguns foram presos, cumpriram penas e outros foram executados em Santos.

Mas Chaguinhas e seu colega Joaquim Cotindiba foram trazidos de Santos para São Paulo, para serem protagonistas involuntário de um episódio público de puro terror e crueldade.

Dois séculos fizeram dele um mártir, um santo, e, por mais que consideremos que camadas de imaginação popular tenham se depositado sobre sua figura, o fato histórico insofismável é que Chaguinhas existiu, não cometeu crime a não ser o de lutar contra uma injustiça, e morreu de forma cruel, martirizado com três tentativas de enforcamento.

O troco histórico é dado até hoje, quando os devotos da Capela dos Aflitos "falam" com ele e batem três vezes na sua porta, uma linguagem cifrada que diz: nós não esquecemos. Nós sabemos do teu suplício. Você não será apagado. Olhe por nós.

Quem quiser, pode assistir a este ritual praticado por dezenas de pessoas, sempre que a Capela estiver aberta.

Também está lá, sob a devotada guarda de Eliz Alvez, o grande livro dos milagres, onde centenas de pessoas já registraram graças alcançadas e milagres concedidos, pela intercessão de Chaguinhas.

 

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Outas representações de Chaguinhas: na primeira foto, desenho do artista José Marques Neto, quadro em exposição na Capela. Na segunda foto, desenho da quadrinista Marília Marz.

 

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Capela dos Aflitos no jornal japonês NIKKEY. Fim do 3º cortejo em 09/10/2020, para lembrar o enforcamento de Chaguinhas.
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Encontro de 29/01/22 na Capela, à luz da vela. Que este sino volte a badalar!

 

 

Serviço e referências

 

Missa na Capela dos Aflitos: todas as segundas-feiras às 12h.

1) Redes da UNAMCA:
facebook - salvemosacapeladosaflitos
Instagram – aflitos.unamca

2) Neide Duarte – reportagem importante para o SPTV.

3) Documentário importante: CHAGUINHAS. Estreou em 03/02/2022. Realização de alunos da Faculdade SENAC. Youtube: http://youtu.be/ewbfWj8EiHU

4) Música sobre Chaguinhas: "Rua da Glória", do artista Aloysio Letra.

Historiadores e estudiosos sobre a Capela e Cemitério dos Aflitos e sobre Chaguinhas:
1) Antonio de Toledo Piza
2) Nicolau Sevcenko
3) Wanderlei dos Santos
4) Abílio Ferreira

5) Igor Carollo
– Trabalho Final de Graduação "Memórias Ocultas do Bairro da Pólvora – Centro de Arqueologia e Memorial Chaguinhas. Defendido na FIAM FAAM. Disponível no ISSU: https://issuu.com/memoriasocultasdobairrodapolvora/docs/monografiafinal. (A Capela continua sendo o tema do mestrado do autor, agora na UFRJ).

6) Patrícia Cristina Rodrigues de Oliveira
– Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do ABC – Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais, em 2020;

TORTURA E MORTE NA LIBERDADE: forca e pelourinho como lufares de memória e consciência da escravidão em São Paulo
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NOTA

O Radar FUNDASP pretende acompanhar o processo de restauração da Capela dos Aflitos e, para isso, manter uma seção fixa sobre o assunto. Informações adicionais e atualizações serão sempre incluídas nas próximas edições ou em edições especiais.